Mas por que uma Coruja?

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Lembro que quando comecei a utilizar corujas em minhas obras, a maioria das pessoas reagiram com certa estranheza, e não era raro ouvir a seguinte pergunta: “Mas por que uma coruja?” Uma década se passou e, pelo incrível que pareça, há pouco mais de um ano as corujas tornaram-se POP, caindo do gosto popular e, como não poderia deixar de acontecer, sua imagem passou a ser utilizada das mais diversas formas como produto de consumo: de canecas e camisetas à roupas sofisticadas e joias. Lembro que na minha infância a “moda” da coruja limitava-se a pequenos bibelôs ou estatuetas que ficavam sobre as estantes da casa da minha avó ou sobre a mesa de trabalho da minha mãe, ambas educadoras por profissão, já que uma das principais simbologias dessa ave era exatamente a sabedoria. Foi nessa época também que costumava escutar histórias interioranas em que a coruja era descrita como uma ave agourenta, que anunciava a Morte. Desde que a coruja se tornou, simbolicamente, uma constante na minha arte, venho pesquisando seu significado social, cultural, espiritual e psíquico em diferentes épocas e culturas e, há algum tempo, vinha pensando em sintetizar essas informações em um artigo sobre esta simbologia. Mas já adianto que, apesar do meu encantamento por esta ave, aquelas duas abordagens sobre o significado – Sabedoria e Morte, antagônicos, talvez – da coruja na minha infância possuem seu fundo de verdade, além de muitos outros significados mais surpreendentes que ainda viria a descobrir em meus estudos. Então, vamos aos fatos, ou melhor, aos Mitos. No Período Paleolítico, diversos grupos humanos se organizavam pelos diferentes continentes do planeta, buscando sua sobrevivência diante uma Natureza inóspita que, ao mesmo tempo, representava a vida e a morte. Nesse tempo, a necessidade de um equilíbrio psíquico e social fez com que, intuitivamente, o ser-humano encontrasse nos fenômenos naturais, na fauna e na flora suas divindades. A atribuição de poderes divinos aos animais, por exemplo, era determinada pelas características (físicas e comportamentais) de cada espécie e pelo o que ela poderia fornecer aos seres-humanos (alimento, vestuário, utensílios e aprendizado) através de um tipo de dádiva. No caso das corujas, nossos ancestrais se depararam com características ímpares, tirando suas conclusões e atribuindo significados que até hoje ecoam no inconsciente coletivo. O fato dessas aves possuírem hábitos noturnos, serem predadoras hábeis e silenciosas, além de emitirem sons soturnos e por vezes estridentes, foram aspectos determinantes para o imaginário humano criar em torno da coruja uma áurea tão misteriosa quanto ameaçadora. Esse simbolismo sombrio está também intimamente ligado as impressões que o homem do paleolítico tinha a respeito da noite, afinal de contas era em meio à escuridão – trevas – que grupos humanos desprotegidos eram devorados por animais selvagens. De onde você acha que vem o nosso medo de escuro na infância? Sim, ecos do passado. Com o surgimento das grandes civilizações do Neolítico, a coruja foi adquirindo novas características simbólicas, através do mesmo princípio da observação humana, dessa vez mais aprimorada. Percebeu-se, por exemplo, o cuidado que essa ave possuía junto a seu ninho, já que enquanto o coruja macho saía pra caçar o alimento para os filhotes, a mãe fazia o papel de guardiã que defendia incansavelmente sua cria contra os predadores. Esse aspecto materno, vinculado também à atividade noturna e a própria Lua (símbolo também do Sagrado Feminino) se estabeleceria através de arquétipos como: A Grande Mãe; A Deusa da Fertilidade; A Guardiã Guerreira. Você nunca se perguntou afinal de onde vem o termo “mãe coruja”?!  Eudaemon 2Dessa época, chamo a atenção para uma divindade da Mesopotâmia chamada Inanna (em sumério) ou Ishtar (em acádio), uma das mais célebres deusas desse panteão, que tinha como atributos divinos exatamente os arquétipos citados acima, que incluíam aspectos de criação, destruição e renovação. Enquanto isso, na Mitologia africana Iorubá havia também uma divindade que possuía as qualidades arquetípicas da Mãe Primordial, cujo nome não deveria ser pronunciado devido a devoção, respeito e temor por parte de seus fiéis. Iyami Ajé seria representada na Natureza pela coruja ou ainda por uma trindade composta de representações distintas dessa ave: A Vida; A Morte; A Transição, assim como na divindade mesopotâmica. Em algumas regiões da África essa divindade tomaria a forma da coruja chamada Rasga-Mortalha (referência ao som emitido pelo pássaro) e que, segundo os antigos, quando a ave emitia seu som – um tipo de “rasgo”- característico, enquanto sobrevoava uma casa, era porque alguém iria morrer naquele local. Se você já ouviu uma história semelhante em algum lugar pelo Brasil, não é de se estranhar, isto se deve a herança cultural africana herdada por nossas tradições e crenças. Na Região Norte a história da Rasga-Mortalha é muito comum, principalmente nos interiores, assim como a lenda da Matinta-Perera que entendo como uma recorrência do mesmo Mito já que, nessa história, a coruja se transforma em uma mulher que encanta suas vítimas. Vale ressaltar que, nesses casos, só herdamos, pelo que parece, a simbologia da Morte relacionada a essa ave, esquecemos de fechar o ciclo mítico original (Iorubá) com a Vida e a Transição. E o resultado disto é o medo, que leva a crendice (bem diferente de Mito!) e, finalmente, a ignorância. Era “comum”, até bem pouco tempo atrás, as pessoas de algumas cidades da região Norte matarem covardemente ninhadas inteiras de corujas da espécie Tyto Alba – conhecidas popularmente como Coruja de Igreja, Coruja das Torres e, muitas vezes, com a tal Rasga-Mortalha. Não posso ignorar o fato da forma cruel como esses infelizes mataram as pobres aves queimando-as vivas e, aqui, me permito fazer uma metáfora com a “Santa” Inquisição, quando muitas mulheres sábias foram queimadas vivas como bruxas. E aí podemos refletir que o grande problema não são as Lendas ou os Mitos, mas como os seres-humanos vêm perdendo seus referenciais simbólicos, especialmente, pelo medo e preconceito, afinal de contas as corujas simbolizam sim as mulheres sábias ligadas a magia (a etimologia dessa palavra provém da Língua Persa, magus ou magi, que significa sábio), mas afinal, o que nos faz enxergar além – a Sabedoria – deve ser destruído?! Na Antiguidade Clássica Greco-Romana a coruja se estabeleceria como símbolo da Sabedoria, vinculada às deusas Athenas e Minerva. Essa atribuição nasceria a partir do comportamento atento e observador da ave, acentuado pelos grandes olhos e pelo giro da cabeça em 270 graus. Em latim era chamada de noctua, “ave da noite” e consequentemente, foi também relacionada com a lua, incorporando o oposto solar. No Mito, Atena é irmã de Apollo (Sol) e é símbolo da reflexão, do conhecimento racional aliado ao intuitivo que permite dominar as trevas, não literais, já que tratamos de Mito, mas de conhecer e dominar seus próprios demônios. Os gregos consideravam a noite como o momento do pensamento filosófico e da revelação intelectual e a coruja, por representá-la, acabou reforçando essa simbologia da busca pelo saber. Dessa forma a coruja se tornou a guardiã dos segredos da noite. Enquanto os homens dormem, ela fica acordada e atenta com seus grandes olhos, banhada pelos raios da Lua. Se observarmos essas qualidades de forma metafórica – simbólica – passamos a entender também o porquê dessa ave ser vinculada a Magia e ao Ocultismo, afinal estamos falando do símbolo da Sabedoria que habita na Noite, na sombra, no desconhecido ou no próprio inconsciente humano. É por isso que a coruja pode representar tanto a Vida (Luz do conhecimento) quanto a Morte (Trevas da ignorância), assim como a Transição (mudança, busca pelo equilíbrio). E aí retomo a pergunta: Por que eu ou muitas outras pessoas do século XXI precisam do simbolismo da coruja? Não suba é só um sonhoA última obra que utilizei – simbolicamente – essa ave chama-se “Não Suba é só um Sonho” e como o próprio título sugere, trata-se de uma decisão do espectador da obra, que envolve o enfrentamento consigo mesmo, afinal quem precisa de sonhos. A verdade é que essa obra, garanto, surpreenderia qualquer ficção, pois vai muito além de formas, cores e símbolos. Durante sua criação, o limiar entre o Mito e a “realidade” foi transposto e, posso garantir, conheci o verdadeiro poder do Mito. Esses fatos reais que envolveram essa história e que não revelarei nesse post, foram escritos e velados em um fotograma que foi colocado ao lado da obra quando foi exposta pela primeira vez. Lógico, só leu quem possuía as qualidades que os gregos mais admiravam nas corujas: A busca pela Sabedoria velada pela escuridão da “Noite”.

Quando a filosofia pinta cinza sobre o grisalho, uma forma de vida já envelheceu e, com o cinza sobre cinza não se pode rejuvenescer, apenas reconhecer; A coruja de Minerva alça seu vôo somente com o início do crepúsculo. (Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1830), Filósofo alemão).

2 comentários sobre “Mas por que uma Coruja?

  1. Muito bom o seu texto a respeito das corujas Nelson!!! eu adorei!.Faço um complemento acerca do tema, que as corujas na cultura cigana são animais protetores de nossas riquezas, elas são responsáveis por fazer a segurança, para que não hajam perdas financeiras, isso no plano físico. No plano espiritual elas também tem significado associado à morte, e representam o consciente e o inconsciente (os olhos seriam os “portais”). Os ciganos não possuem essa ave viva em sua casa ou tenda, pois estariam “retirando a liberdade do vôo livre”, visto que a coruja é um animal alado, e para os ciganos a liberdade é a palavra que define o ser vivo “, dessa maneira estariam indo contra o lema da cultura que é “o céu é meu teto; a terra é a minha pátria e a liberdade é a minha religião. A coruja aparece também na bíblia… de muitas formas, mas nenhuma positiva rsrsrs, biblicamente a coruja é um animal impuro para comer, pois tem carne impura e também está associada à morte. Mas no livro de Salmos, a coruja aparece com o significado interessante…A solidão. ( nunca ouvi ;ou li em nenhum lugar a coruja associada à SENTIMENTO), e lá explica os motivos dessa associação…Por ser ser um animal noturno, que costuma caçar sozinho faz barulhos semelhantes a gemidos e não vive em bando, Davi utilizou a coruja das ruínas para explicar seus sentimentos de solidão e angústia. Bem, espero ter contribuído de alguma maneira…

    abç

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